terça-feira, 18 de setembro de 2007
DIVAGAÇÕES: Sr. Ovídio
Nunca um nome traduziu tão bem uma pessoa, decifrando os seus enigmas, frustrações e ambições, como Ovídio fez para este ser humano. O Sr. Ovídio, como preferia de ser chamado, era um homem hermético e instropectivo, nem aparentava a idade que tinha. A barba, os óculos, a brancura de sua pele reforçavam o seu esteriótipo. Nitidamente esforçava-se para ter uns 70, mas nem a metade possuía. Pensava que com a idade vinha o respeito. Na prática este pensamento atingia resultados, todos os seus vizinhos acreditavam que o Sr. Ovídio tinha uns 65, 68 e até com muito esforço uns 72 anos, e todos sem exceção acreditavam na sua lisura e postura. Era sim um homem respeitado. Dona Benta, vizinha de apartamento do Sr. Ovídio, imaginando a história dele, estava quase certa de que ele fosse viúvo, sem filhos, e a perda da mulher lhe deixou bruto e insensível. Só o via de manhã ao sair para trabalhar, dizia-lhe um bom dia seco, mas de bom grado. O Sr. Ovídio, sinceramente, tentava retribuir da mesma forma, porém as palavras saíam com dificuldade de sua boca. Constituía-se num exercício sobre-humano agradar uma vizinha simpática e prestativa. Ela o ajudava com o lixo e ficava de olho na empregada, Da. Otila, vendo se ela não esquecia algo em suas maletas. O Sr. Ovídio odiava ser passado para trás e algumas vezes já teve de dar uns pitos na Da. Otila, a qual chamava de "mãos desligadas". O Sr. Ovídio em agradecimento pelos serviços prestados esboçava um sorriso e levantava sutilmente o seu chapéu para Dona Benta, que sorria de volta.
Caros leitores, não se espantem, o Sr. Ovídio, em pleno séc. XXI, usava um chapéu clássico preto, ternos escuros e sobretudos, não importando se chovia ou se o Sol estivesse a pino nos 33ºC. Fazia parte do seu estilo e de suas pretensões, evitar ao máximo contato com pessoas, seres vivos, animais. Evitava dirigir o seu olhar a alguém ou fixá-lo por mais de 3 segundos. Queria evitar aqueles exercícios desnecessários e incômodos. Devo dizer-lhes que o Sr. Ovídio chegou ao grau máximo do minimalismo. Interagir, comunicar, trocar, entre outras coisas, são verbos dos quais o Sr. Ovídio não faz idéia para que servem. O mundo inteiro era o seu apartamento, o trabalho e o trajeto apartamento-trabalho.
O Natal era mais uma época a ser contabilizada, "um bom momento da empresa" tentava sorrir Ovídio. Mas no fim tornava-se igual a qualquer outro dia de semana do mês de Agosto, só que mais quente e cheio de movimentação. O Sr. Ovídio não ligava para burburinho ou agitações, não tinha tempo, não pensava em nada, não possuía opinião. Era apenas mais uma estatística no IBGE.
Contudo, esquece o Sr. Ovídio que o mundo urge a vida que emana de suas forças físicas, naturais e fenomenológica, que o convívio em sociedade nos impede de isolarmos sem que nos pertubem. A sociedade burguesa, a qual o Sr. Ovídio faz o serviço sujo, lavando as suas contas, incentiva a conexão e a comunicação entre as pessoas, para melhor controlá-las. A sociedade necessita, Sr. Ovídio, invadir o seu apartamento, saber o que está assistindo, as suas atividades, o que faz antes de dormir, os seus hábitos sexuais… Nem ao padre você vai, Sr. Ovídio! O Natal serve para isso, amolecer os nossos corações e movimentar as nossas contas bancárias, fazermos empréstimos, endividarmo-nos… Você nem amigos tem, como pode gastar em algo? Você não gera empregos, não divide, não multiplica, não soma e nem subtrai nada. Mas o Sr. Ovídio não se altera diante destes comentários, o seu rosto impassível, cara de paisagem, contempla a vida como se fosse as infindáveis planícies da seca do Nordeste.
Mas Deus não se esquece dos insetos e bichos rastejantes que habitam os submundos das cidades, por quê agora iria deixar passar essa existência estúpida do Sr. Ovídio? Não esqueceu e a fez em final apoteótico.
O único lugar que uma pessoa como o Sr. Ovídio tem de ir para sobreviver é ao Supermercado. Senhoras e senhores, ele tem de comer! Ia paramentando o seu terno preto e sobretudo tradicional, destoava totalmente do ambiente. Odiava as decorações e as árvores de Natal, aliás achava um crime deixá-las morrer depois do dia de Reis. Mas não queria tê-las em casa. "Dão muito trabalho", uma vez disse com sofreguidão.
Ao voltar para o presente de Deus, o supermercado do bairro, o Almeidinha, estava lotado de pessoas, ante-véspera de Natal. Um calor absurdo e um barulho ensurdecedor. O caos estava formado e o Sr. Ovídio nem ligava, continuava impassível, sem se perturbar um minuto sequer. A fila enorme e o caixa lento irritava completamente qualquer pessoa normal. A senhora com o carrinho a frente do Sr. Ovídio esbravejou, xingou e desmaiou com pressão baixa. E reclamava em direção ao Sr. Ovídio, "Eu preciso preparar a farofa e o chester ainda hoje!" A hora, 23:11hs. Começou uma agitação esquisita no caixa do lado. Uns homens encapuzados, com mala de estudante, em plena ante-véspera de Natal? "Isto é um assalto!", gritou o líder do grupo de 10. O Sr. Ovídio contou todos. Viu a situação, olhou-os todos armados e nervosos. E decidiu tomar uma atitude contra todos os seus princípios, indignou-se contra os assaltantes e contra o pessoal do ônibus, mas não disse nada. Ficou vermelho, o corpo suando...Ao pegar um lenço do seu sobretudo, levou cinco tiros à queima-roupa e morreu no local. Os bandidos assustados foram embora e se esqueceram de assaltar o ônibus e seus passageiros. Pelo menos a vida do Sr. Ovídio não foi em vão, a sua morte impediu o roubo de muitos...
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